AS DUAS COLINAS DE MUNIQUE
Entre cores, sombras e surpresas
Já havíamos percorrido cerca de 100 km de bicicleta pela cidade, quando começamos a subir. O sol, que ainda iluminava a noite daquele dia de verão em Munique, derretia meu rosto. Lá do alto, parei sob a cúpula espetacular do Estádio Olímpico. Ainda na bike, vislumbrei um passado que voltava, à medida que meu olhar descia pelas arquibancadas vazias do confete formado pelas multidões, até chegar à pista de atletismo. As visões magistrais de 1972 retornavam ao presente. A liderança da final dos 5.000 metros trocando de dono por três vezes a 200 metros da chegada, até a vitória do finlandês Lasse Viren. O mesmo atleta que, dias depois, caiu na pista nas primeiras voltas da final dos 10.000 metros, ficou para trás, e retornou à corrida para vencê-la, batendo o recorde mundial. Na volta da vitória pela pista, foi cumprimentado pelo americano Frank Shorter, sexto colocado, o mesmo que levaria o estádio ao delírio, uma semana depois, ao vencer a Maratona Olímpica e dar início ao crescimento frenético das corridas de rua em todo o mundo. Mas, alguns dias antes da Maratona, uma emocionante cerimônia fúnebre havia sido realizada ali. E foi também naquele gramado que a Alemanha de Beckenbauer venceria a laranja mecânica da Holanda, por 2×1, conquistando, em casa, a Copa do Mundo de 1974.
Bernd, meu amigo da IBM Alemanha, nascido e criado em Munique, companheiro de pilotagem de um premiadíssimo projeto internacional de consultoria na Volkswagen do Brasil, esperou meu estupor diminuir, para então afirmar: “Existem apenas duas colinas em Munique. E as duas são artificiais. Esta, do Estádio Olímpico, e aquela outra ali”. E apontou para um morrote mais abaixo, coberto de grama, já tomado pelas sombras do dia que se encerrava. As mesmas sombras que avançavam em direção à Vila Olímpica.
Munique, capital da Bavária, é a terceira maior cidade da Alemanha (atrás de Berlim e Hamburgo), tem cerca de 1.300.000 habitantes e está situada aos pés dos Alpes, em uma planície cortada pelo Rio Isar. Seu passado remonta a 1158, quando uma ponte foi construída, próxima a um acampamento de monges beneditinos. Em alemão arcaico, “München” significa “lugar dos monges”, justificando o emblema da cidade. Se a imagem de Munique é de alegria, sua auto-avaliação, “Tradição e Modernidade”, seu marketing, “Paraíso da Alemanha” e seu slogan turístico, “Munique gosta de você”, sofrimento e sombras também se apresentam em sua trajetória. A cidade foi bombardeada e reconstruída nas duas Guerras Mundiais. Dali surgiram Adolf Hitler e o Nazismo. Dachau, o primeiro campo de concentração, está localizado a apenas 16km de suas avenidas. E o assassinato de 11 atletas e treinadores israelenses, por terroristas do “Setembro Negro”, manchou de forma definitiva os Jogos Olímpicos de 1972.
Estive três vezes em Munique. Na primeira, ainda estudante de Engenharia, minha estadia foi rápida o suficiente para tomar o maior porre da minha vida. Não tive forças para contar se foram dois ou três canecões de litro servidos por louronas de vários litros na Hofbräuhaus, a mais famosa cervejaria do mundo. Ficou também a vaga lembrança de que o mictório era imenso, como o do Maracanã. A segunda vez foi meio kafkiana. Executivo da IBM, passava por Paris em meados de Setembro, a trabalho, quando fui chamado para uma reunião em Munique. Tipo bate-volta. Cheguei no início da noite a um Holiday Inn básico, próximo das instalações da IBM, na periferia da cidade. Querendo voltar à cervejaria do porre monumental, pedi orientações na recepção do hotel, pois obviamente não tinha mais idéia do nome do imponente estabelecimento. Muito gentil, o atendente sugeriu: “Por que o senhor não vai à Oktoberfest?”. Do alto de minha cara de planta, e conhecedor da homônima de Blumenau, ainda retruquei “mas, senhor, estamos em Setembro…”. Não esperei resposta, agradeci e entrei no táxi. Também gentil, o taxista explicou que a primeira Oktoberfest aconteceu em 12 de outubro de 1810, celebrando matrimônio de príncipe com princesa. Mas a tradição pegou mesmo em outro calendário e se estende por duas semanas a partir de Setembro, para terminar no primeiro domingo de Outubro (ou seja, a Oktoberfest catarinense é mais Oktober que a original). Situada em um parque de diversões imenso, com roda gigante e tudo, a Oktoberfest atrai milhões de visitantes para suas incontáveis tendas de rodízio de cerveja, em mesas comunitárias enormes, animadas por berros, saudações, “prosits” e pelas contagiantes bandas folclóricas de bochechas rosadas. Em minutos, era irmão íntimo de umas quinze pessoas entusiasmadíssimas. Sem porre desta vez, pois assuntos automotivos me esperavam na manhã seguinte, na IBM. Afinal, na modernidade da região de Munique contam-se as sedes da BMW e da Audi.
A terceira viagem a Munique ocupou uma semana de férias no verão alemão. Aí sim, consegui sentir a cidade. Ciceroneado por Bernd Riedel, da IBM Alemanha e, na época, triatleta de competição, como eu, percorria de 100 a 200 km diários de bike. Sempre cobrindo uma agenda de cores, sombras e surpresas.
Os cartões postais coloridos de Munique saltam aos olhos sem esforço, ajudados pela configuração quase plana da cidade. A começar pela distante muralha imponente, formada pelos Alpes nevados, vistos de qualquer ponto cardeal. Os parques vêm a seguir. Olympiapark, investimento para os Jogos Olímpicos de 1972, ímã permanente de visitas e eventos por quase 40 anos. O Englischer Garten, maior que o Central Park de Nova York, regado pelo corcoveante Rio Isar, contribuinte de quilômetros de retas e curvas ao percurso da Maratona de Munique. Fora os biergartens, mistura de balada com happy hour pela manhã, tarde e noite, e oásis de cerveja gelada, sob brisas e árvores, nos pit-stops do turismo de bike. Um pedal de 6km a partir do biergarten, em direção noroeste, permite um abençoado borrifo de água nos chafarizes do Schloss Nymphemburg, gigantesco castelo à imagem de Versailles, considerado uma das mais lindas residências reais da Europa.
Mais 20km e chegamos às trevas do meio dia, nos portões de Dachau. Ali, ficaram prisioneiros e foram mortos os primeiros judeus vítimas do nazismo. Dachau foi uma espécie de protótipo para o Holocausto. Diante dos portões, da cerca, dos galpões, dos crematórios, engasguei. Não tive coragem de avançar e seguir os trilhos da abandonada ferrovia; o ambiente pesava toneladas e o silêncio dos gritos do passado era ensurdecedor. Em rimo acelerado, pedalamos embora para, quase uma hora depois, entrar no Olympiapark e passar pela Vila Olímpica, antes de subir a colina do Estádio. O ataque do “Setembro Negro”, em 5 de setembro de 1972, ainda sacode a alma para quem conhece o episódio. Placas indicam aqui, ali os eventos daquele dia. Mas, o inconfundível terraço do apartamento israelense onde um dos integrantes do grupo terrorista, encapuzado, aparecia e observava as reações e negociações, derrama sombras sobre aquele colorido impressionista. Episódio encerrado com a morte dos onze reféns e de cinco dos oito terroristas. A tradição do minuto de silêncio toma conta daquele espaço, e é sugada para dentro do estádio onde, nas poucas horas em que os jogos olímpicos ficaram interrompidos, emocionante cerimônia fúnebre foi realizada, com a presença de atletas de quase todas as delegações. Países simpatizantes do “Setembro Negro” não compareceram, nem baixaram suas bandeiras a meio pau, protestando contra o luto. Aplaudiram, assim os “Jogos Olímpicos do Terror”, o banho de sangue do “Setembro Negro”. Não existem quase filmes passados em Munique, mas duas obras-prima retratam a tragédia olímpica. “Munique” (2005), de Steven Spielberg, candidata a Oscar e “Onde Day in September”, (1999) Oscar de melhor documentário. Nesse último, as cenas de violência são tão chocantes quanto a postura política e confusa das autoridades alemãs.
Pedaladas pela Munique medieval produzem efeito de retomada da alegria, do alvoroço. O magnetismo da Marienplatz, sede da prefeitura, é contagiante, principalmente às 11 e às 15 horas. Naquela praça imensa, um quase mutismo anuncia a espera da coreografia mecanizada do secular do relógio bávaro. Os olhares para o alto transformam as pessoas em peregrinos da história, com suas faces de todas as raças iluminadas pelo transe do encantamento infantil. Performance encerrada, cardumes de turistas seguem seus roteiros, enquanto outros, de residentes, retomam seu trabalho. Todas as esquinas agora traçam caminhos medievais. Seja até para um MacDonald’s travestido de residência de Lohengrin, ou talvez para o Museu de História de Munique (Stadtmuseum) ou para as torres da Frauenkirche, construção mais alta da cidade.
Datada de 1488, inicialmente gótica, a catedral de Frauenkirche mantém seu exterior original. Já o interior, reformado para o barroco do século XVII, acabou destruído pelos bombardeios da Segunda Guerra Mundial. O espaço, hoje totalmente sem adereços e vitrais artísticos, chama atenção pela impressão em bronze da “Pegada do Diabo”. Diz a lenda que o arquiteto da Igreja fez um pacto com Belzebu para conseguir ajuda na construção do edifício. Ali não haveria janelas, era a condição. Mas, as janelas foram dispostas de tal forma, que deixavam um ponto cego no centro da nave. Dali, não se viam as entradas de luz. Enganado, Satanás teve um chilique e bateu com pé direito no chão, eternizando sua fúria. Dizem que seu calçado é tamanho 42. Munique recebeu atenção especial aliada na reconstrução da Alemanha. Sumiram as cicatrizes expostas da guerra; mas, pela sua característica de obra-prima, Frauenkirche, só ficou pronta em 1994. Os 109 metros de altura da igreja são o gabarito para construções em toda a cidade. A moderníssima sede da BMW, um dos marcos construídos para a Olimpíada, é 8 metros mais baixa.
Outra referencia automotiva mundial fica em Ingolstadt, a poucos quilômetros de Munique. Mais importante centro de produção de meu desejo de consumo: Audi. Não podia não ir até lá. Reunião de trabalho saboreada com o tradicional “café com bolo” alemão, envolvendo a fábrica da Vokswagen em Curitiba, onde viria a ser produzido o Audi A3. Em aderência à disciplina alemã de pontualidade entre os limites de horário de trabalho e prazer, Bernd e eu passamos um fim de dia em um biergarten às margens do rio. Como cada cidade alemã tem suas próprias marcas de cerveja, tomei uma Herrnbrau light , conseguindo, assim, condição técnica para voltar a Munique pilotando um incandescente Audi TT.
No retorno à cidade, o trajeto para meu hotel passava obrigatoriamente por uma belíssima avenida emoldurada por um arco do triunfo quase romano. Como uma versão alemã da francesa Champs Elysées, a ampla Leopoldstrasse recebe o Siegestor (Portão da Vitória), um dos remanescentes da arquitetura nazista em Munique. Com olhar treinado e preparado, os sinais do nazismo podem ser facilmente identificados. Defronte à Führerbau, antiga Residência Oficial de Hitler estão as ruínas bombardeadas do Templo de Honra, sepulcro de dezesseis integrantes do Partido Socialista, mortos no golpe de 1923, que levou Hitler à prisão, à sua obra “Mein Kampf” e a seu ódio universal. Durante anos, uma guarda de honra da SS, em seu uniforme de gala negro, ali postou vigilância, 24 horas por dia. A magnífica Galeria de Arte, a Haus der Kunst, projetada para 2.000 anos de arte alemã, foi uma das meninas dos olhos de Hitler. Teve sua pedra fundamental lançada em 1933, em espetacular cerimônia de propaganda nazista, não menos impressionante que as festividades de sua inauguração, celebrada em 1937, com mares de tropas, oceanos de estandartes vermelhos e swastikas, desfilando durante dois dias, diante dos líderes nacionais. Logo após a guerra, em 1946, a Haus der Kunst foi utilizada como centro de distribuição de suprimentos para as tropas aliadas. Atualmente é local nobre para exibições especiais como a Mostra de Tutankamon e a Coleção Farnese, já que o antigo acervo foi transferido para a Nova Pinacoteca. Tive oportunidade de visitar a coleção Farnese, trazida de Roma e de Florença. Entre pinturas renascentistas e estátuas gregas e romanas, não pude deixar de reparar na imensidão ariana dos espaços do prédio e até perceber, no teto, disfarçados mosaicos estilizados com swastikas.
Um dos logotipos da Alemanha é o Castelo Real Neuschwanstein, do Rei Ludwig II, um nobre infeliz misteriosamente afogado no magnífico Lago Starnberg, que banha Munique. Existem aí duas curiosidades: o castelo pouco foi usado pelo rei, mas serviu de inspiração para um dos lugares mais visitados de todo o mundo. Além disso, pode ser visto à distancia, a partir uma das “praias” de grama de Munique, à beira do imenso lago. Sol de verão, praia lotada, fui a nocaute. Estavam todos, todos pelados. No máximo, um boné.Tradição alemã ignorada por aborígene brasileiro. Tinha de tudo, de todos os tamanhos e de todas as idades, em colóquios animadíssimos ou espalhados na grama em forma de escancaradas e indiscretas estrelas. Bernd se dobrava de rir com meu mico. Duas simpáticas guias turísticas, Helga e Birgit se dispuseram mostrar a região e os lagos ao assustado e já bronzeado brasileiro. Não me lembro direito das explicações, apenas que a água do lago tinha temperatura nordestina e que eu queria sair daquele convescote de partes íntimas o mais rápido possível.
Depois de uma noite naturalmente mal dormida, saí cedo para um treino longo de corrida pelas margens do Rio Isar. Fazia parte de meu treinamento para uma segunda Maratona de Nova York. Percurso totalmente arborizado, desde o hotel e pela trilha asfaltada que segue o desenho do rio. Água límpida, transparente; neve e gelo derretidos dos Alpes. Curso encachoeirado aqui, manso mais à frente, ora fundo, ora raso, som de água afinado com canto de pássaros, sonho de qualquer corredor de longa distancia. De longe, reparei que havia banhistas nas prainhas de pedras redondas, nas pequenas ilhas fluviais. Nada a ver; concentração total no treino, ritmo, distância, hidratação. Sem camisa, encharcado de suor, vendendo saúde, estava feliz depois de duas horas de exercício. Resolvi atravessar para a outra margem e cortar caminho até o hotel. Muita calma nessa hora. Pelados me aguardavam na prainha. Espantado, meti os pés calçados de Nike rio adentro, até o refúgio de uma ilhota. Ledo engano, era um ninho de homossexuais. Acelerando pela pista de terra, ouvia a gritaria da estranha fauna que pulava do mato para falar comigo, querendo sei lá o que. Em segundos estava na outra margem, onde, finalmente as peladas eram maioria. Alonguei ali mesmo, dei uns mergulhos no rio gelado e voltei para a proteção do hotel.
Virei celebridade naquela noite, no Hofbräuhaus, com as gargalhadas e faniquitos de Helga, Birgit e Bernd, às custas deste turista brasileiro ignorante de assuntos naturalistas. Mas a noite internacional passou como o prelúdio de um novo cartão postal bávaro. O domingo de céu azul sob montanhas nevadas aconteceu em Walchensee, lago na subida dos Alpes. Helga e Birgit levaram cesta de picnic, Bernd levou duas bicicletas e eu levei coragem. Fizemos um triatlo na montanha. Natação no lago fundo, bicicleta morro acima e corrida morro abaixo. Quem ganhou? Faz diferença? Foi meu último triatlo.
O avião partiu cedo com minhas lembranças definitivas de Munique na bagagem. Folheando meu livro “Munich in Picture”, constatei que quase tudo que havia visto naquela semana não estava lá publicado. Uma espécie de versão pasteurizada para turistas superficiais. Naturalmente, nenhuma menção à origem artificial das duas colinas. Mas, sobrevoando o Olympiapark, pude vê-las uma última vez. O magnífico estádio coroando a maior, e a grama nua cobrindo a mais baixa. Na evacuação dos judeus de Munique pelos nazistas, seus móveis e pertences, já desnecessários, eram transportados para a periferia da cidade, onde foram sendo amontoados. O avanço alucinado do Holocausto fez o monte crescer mais e mais. Com a rendição e a reconstrução da Alemanha, acabou abandonado. Coberto de mato, transformou-se em paisagem. Mas, sem dúvida, é uma das mais desconhecidas e silenciosas testemunhas do horror. A população de Munique sabe disso.
Caderno de Anotações
1. Existem dois filmes premiados sobre o atentado terrorista em Munique.
Munich (2005) http://www.imdb.com/title/tt0408306/
“One Day in September” (1999) http://www.imdb.com/title/tt0230591/
2. Luciano Pavarotti deu um concerto de gala no Olympia Hall, em 1986.
http://www.youtube.com/watch?v=yExzVOHn-ts
3. Apesar do massacre de 1972, Munique é candidata aos Jogos Olímpicos de Inverno de 2018.
4. O Principal estádio de futebol de Munique agora é o Allianz Arena, construído, sem PAC do PT, para a Copa do Mundo de 2006.
5. Apesar de, na última visita a Munique estar treinando para uma segunda Maratona de Nova York, acabei não viajando. A dois meses da prova, quarenta dias no gesso por fratura de stress na fíbula esquerda.
6. Os desempenhos de Lassen Viren nos heróicos 5.000 e 10.000 metros de Munique ’72 e a vitória de Frank Shorter na Maratona, que encerrou aqueles jogos, ainda podem ser relembradas com narrações e emoções da época.
http://www.youtube.com/watch?v=8RTUit6Yogg
http://www.youtube.com/watch?v=MkXsjfVnG0k
http://www.youtube.com/watch?v=THUKgZX9pw8